sábado, 1 de março de 2014

Alma minha gentil, que te partiste



Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,


Repousa lá no Céu eternamente,


E viva eu cá na terra sempre triste.



Se lá no assento etéreo, onde subiste,


Memória desta vida se consente,


Não te esqueças daquele amor ardente


Que já nos olhos meus tão puro viste.



E se vires que pode merecer-te


Alguma cousa a dor que me ficou


Da mágoa, sem remédio, de perder-te,



Roga a Deus, que teus anos encurtou,


Que tão cedo de cá me leve a ver-te,


Quão cedo de meus olhos te levou.



Camões, Rimas






Gonçalo Salgueiro




 Amália






- Versos: Todos os versos obedecem ao mesmo ER. 10 (6-10) são, portanto regulares, marcando a semelhança fónica no final de certos versos.

Estrofes: São compostas de duas quadras e de dois tercetos, que é a forma fixa dos sonetos, formando uma unidade de 14 versos decassílabos heróicos.

     As rimas são:
- Externas, que é um recurso de grande efeito musical e rítmico;
- Consoantes, com semelhança entre consoantes e vogais;
     - Paroxítonas nas rimas A/ B/ C e oxítonas nas rimas D;
     - Seguem o esquema AB BA AB BA CD CD CD. Nos quartetos as rimas A estão interpoladas e as rimas B emparelhadas. Nos tercetos as rimas C e D estão cruzadas (ou alternadas);
     - As rimas A e B são ricas na primeira estrofe, ou seja, partiste (verbo partir) e triste (adjetivo), e as rimas A e B da segunda estrofe são pobres, pois tem a mesma classe gramatical subiste e viste são verbos, assim como consente e ardente são adjetivos além da C e D, que também são pobres, pois os verbos da estrofe C: merecer-te e perder-te e ver-te, assim como os verbos  ficou, encurtou e levou na estrofe D, possuem mesma classe gramatical.
·         Camões faz uso da cacofonia ao juntar as palavras “Alma minha”, formando o cacófato “maminha.

·         De referir as oposições entre “lá” e “cá”, “Céu” e “terra”, “repousa (...) eternamente” e “viva (...) sempre triste”, que podem ser interpretadas como uma antinomia entre feminino e masculino: à amada cabem os primeiros termos; ao eu-lírico, os segundos. Mas pode ser vista também uma oposição entre céu/espírito (ela), com características positivas, e terra/carne (ele), com características negativas. Esse é o contraste básico do neoplatonismo, de acordo com o qual a matéria, a carne, o corpóreo, é inferior ao ideal, ao espiritual. 
  •   “amor platónico”, ou seja, aquele que se manifesta plenamente sem a necessidade do carnal, do corpóreo, preso apenas à ideia, ao pensamento. É a tese presente nos quartetos de outro soneto, “Transforma-se o amador na cousa amada”.

  • No entanto, os versos 7-8 de “Alma minha gentil, que te partiste” demonstram como Camões reinterpreta essa teoria. Basta observar que o eu lírico pede que a sua amada, um espírito, se lembre do amor ardente (obviamente, de valor carnal) que ele já mostrara tão puro nos próprios olhos (obviamente, um valor espiritual). Há, portanto, uma fusão entre carnal e espiritual, ou seja, entre matéria e ideia – o espiritual tem elementos carnais e o carnal tem elementos espirituais. Essa mesma fusão é percebida em “Transforma-se o amador na cousa amada”, basicamente entre a ideia dos quartetos (primado do espiritual) e os tercetos (primado do carnal). A ideia precisa da matéria para se realizar plenamente.

  • Ao opor masculino e feminino, acaba derramando elementos carnais ao homem e quase os eliminando por completo na mulher, que a  torna uma figura etérea, divina. Eis outra clara influência petrarquista.  




segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013


Como quando do mar tempestuoso



Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado
(1),
de um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso,

e jura que, em que
(2) veja bonançoso
o violento mar e sossegado,
não entre nele mais, mas vai forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

assi, Senhora, eu, que da tormenta
de vossa vista fujo, por
(3) salvar-me,
jurando de não mais em outra ver-me:

minh’alma, que de vós nunca se ausenta,
dá-me por preço ver-vos, faz tornar-me
donde fugi tão perto de perder-me.

Luís de Camões
(1)   Trabalhado: cansado dos trabalhos pesados
(2)   Em que: ainda que
(3)  Por: para



1.   No texto estabelece-se uma relação de semelhança entre duas situações.
1.1.      Delimite as duas partes lógicas do texto.
1.2. Indique e classifique morfologicamente os conectores que estabelecem a relação indicada.
1.3.      Sintetize a contradição patente no comportamento do marinheiro.
1.4. Transcreva os segmentos textuais da segunda parte que correspondem aos seguintes elementos da primeira:
1.4.1.    Marinheiro lasso e trabalhado (v.2);
1.4.2.    Mar tempestuoso (v.1)
1.4.3.    Jura que […] não entre nele mais (vs. 5 a 7)
1.5.      Classifique a figura de estilo presente na expressão tormenta da vossa vista (vs. 9 e 10) e comente a sua expressividade.
2.   A fraqueza confessada pelo sujeito poético é também uma forma de reforçar a confissão do seu amor.
2.1.      Explique porquê.
2.2.      Identifique o destinatário da confissão.
3.   Faça a análise formal do soneto, indicando:
3.1.      A estrutura externa;
3.2.      A divisão das sílabas métricas do 1.º verso;
3.3.      O esquema rimático.
4.   Justifique a integração do texto na corrente renascentista da poesia camoniana.
5.   Este poema dá-nos uma visão tipicamente camoniana do amor. Elabore um texto subordinado ao tema A vivência do amor nos sonetos de Camões.
6.   Documente o seu texto com algumas referências aos sonetos de que mais gostou.







sábado, 16 de fevereiro de 2013


Quando o sol encoberto vai mostrando




Quando o sol encoberto (1) vai mostrando
Ao mundo a luz quieta
(2) e duvidosa (3),
Ao longo de uma praia deleitosa
(4)
Vou na minha inimiga
(5) imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando
(6);
Ali, co'a mão na face tão, formosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa
(7);
Agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos, tão isentos
(8);
Aqui movida
(9) um pouco, ali segura (10).

Aqui se entristeceu, ali se riu.
E, enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura.

Luís de Camões, Rimas


1. hora do poente
2. sossegada
3. hesitante; incerta
4. amena; aprazível; agradável
5. mulher amada
6. compondo
7. pensativa
8. livres; tranquilos; despreocupados; não interessados no sujeito poético
9. comovida
10.  tranquila


1.   Divida o poema em partes lógicas e justifique sinteticamente essa divisão.
2.   Explique o que nos sugere o espaço natural descrito nos três primeiros versos.
3.   Mostre que o sujeito poético caracteriza a figura feminina através de contrastes.
4.   Identifique dois recursos estilísticos e transcreva exemplos para os mesmos.
5.   Comente os valores expressivos desses recursos neste poema.
6.   Compare, justificadamente, os estados de espírito do sujeito poético no passado e no presente (que se prolonga para o futuro).
7.   Indique e justifique o tema do poema.
8.   Proceda à descrição formal do poema, quanto aos seguintes aspectos:
- classificação das estrofes quanto ao número de versos
- classificação da composição
- esquema rimático
- métrica



Ao mundo a luz quieta
 e duvidosa ,
Ao longo de uma praia deleitosa

Vou na minha inimiga
 imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando
;
Ali, co'a mão na face tão, formosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa
;
Agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos, tão isentos
;
Aqui movida
 um pouco, ali segura .

Aqui se entristeceu, ali se riu.
E, enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura.

Luís de Camões, Rimas


sábado, 9 de fevereiro de 2013


Erros meus, má fortuna, amor ardente




Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor, somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos…
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís de Camões
 <><><>

·           Soneto em decassílabo heróico.
·           Abba/abba/cde/cde
·           Ritmo ternário no 1.º verso
·           Lamento do sujeito por se sentir alvo da conjura dos erros, da fortuna e do amor para o fazerem infeliz.
·   Adjetivação – discurso valorativo – acentua o pendor disfórico e hiperbólico do texto.
·           O corte mais profundo na estrutura deste soneto passa entre o 1º e o 2.º terceto. Pode, assim, distinguir-se um discurso autobiográfico (escrito na 1.ª pessoa, referente ao passado) e dois versos exclamativos que exprimem um desejo relativo ao futuro).
·           Na 1.ª parte formam-se três blocos de quatro versos.
1.ª quadra – tempo passado – pretérito perfeito; presença de três vocábulos base: erros, fortuna, amor.
2.ª quadra – projeção do passado no presente
1.º terceto e 1.º verso do segundo terceto – tempo passado – regresso dos três vocábulos base (variante: errei)
·           Ao longo de toda a primeira parte existe uma rede de palavras  - de conotação negativa – que exprimem sentimentos: dor, magoadas iras, nunca ser contente, mal fundadas esperanças, breves enganos. Constituem um vocabulário do sofrimentos (perdição), relacionado com erros, Fortuna, Amor.
·           Este vocabulário é, assim, completado por aquele que se encontra mais ligado a Fortuna (má, castigar) que domina e transforma – fatalismo. As transformações que o Destino operou recaem sobre a maneira de viver o amor que vai evoluindo ao longo do tempo:
1.º “do amor não vi senão breves enganos”
2.º “não querer já nunca ser contente”
·           A exclamação final corresponde ao desejo de libertação desse Destino (má Fortuna). – A expressividade da exclamação final fortemente acrescida pela consecutiva hiperbolizante.


OUVIR: http://ensina.rtp.pt/artigo/joao-reis-le-luis-vaz-de-camoes/