sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013


Amor [...]










Amor é fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;
 
É um não querer mais que bem querer;
é solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder;
 
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata lealdade.
 
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?



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0 Amor é, de facto, o principal tema de toda a lírica camoniana – como é n'Os Lusíadas, uma das grandes linhas que movem, organizam e dão sentido ao universo, elevando os heróis à suprema dignidade de, através dele, atingirem a divinização.
Na Lírica de Camões, o amor é, contudo, fonte de contradições vivamente sentidas: ele é sucessivamente “fogo que arde sem se ver”; “ferida que dói e não se sente”, “contentamento descontente” – daí que dificilmente ele possa trazer consigo a alegria e a paz. É algo de indefinível ou, nas próprias palavras do Poeta, “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê.”
O amor aparece nestes poemas sob uma dupla abordagem. Uma é a sua abordagem à maneira petrarquista, de raiz provençal e neoplatónica. Trata-se de um amor espiritualizado, em que não se vislumbra o corpo dos amantes, que se compraz na adoração e contemplação do ser amado e que leva a que o amador se “transforme” na “cousa amada”. Num amor assim vivido, a ausência da amada não só não é sentida com dor, mas é encarada como ocasião de purificação do sentimento amoroso. A mulher amada, encarada como reflexo da beleza divina, é a ponte para a perfeição do “amador”. Assim, ela não é retratada com traços fisionómicos precisos – a sua beleza, que é grande, reside sobretudo no olhar, “brando e piedoso”, na postura “humilde”, na bondade; o seu retrato é um retrato psicológico da perfeição e pureza que dela emanam. Regista-se a impressão que a sua beleza causa, e não os traços de que essa beleza é feita. Trata-se de um ser sublime, divinizado, que se movimenta numa natureza alegre, colorida, paradisíaca. (...)
Mas o amor aparece também visto sob outro aspecto, numa outra abordagem. Camões, senhor de uma “longa experiência” de vida, apercebe-se da enorme distância que vai do pensamento à realidade vivida – e sente, mais violentamente que Petrarca, que a vivência quotidiana do amor, longe de trazer tranquilidade e paz, se for dela excluído o factor erótico, traz inquietação e perturbação. (...)
Da tensão (...) entre o amor espiritual e o amor sensual, resultam, para quem ama, conflitos interiores, perplexidade, contradições, angústia. O sentimento amoroso torna-se motivo de perturbação; a mulher amada transforma-se em “fera”, em “Circe”, que enfeitiça, destilando no amador o "mágico veneno" e transformando-lhe o pensamento – a ausência e a morte da amada passam a constituir ocasião de dúvida, ciúme, angústia, “mágoa sem remédio”.
Amélia Pinto Pais, Eu cantarei de amor - Lírica de Luís de Camões, Areal Editores


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