sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013


De Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos.



    De Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu mais pobre ainda (se não miseravelmente), ele, que acumulou bens que milhares e milhares de homens não têm chegado para delapidar. E será difícil exaurir tão fabulosa fortuna. Porque – quem o duvida? – foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação  de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo da melancolia. Daí ser raro o verso português digno de tal nome que as águas camonianas não tenham molhado de luz, desde as mais ásperas das suas consoantes às suas vogais mais brandas.
   Fora do nosso coração, não sabemos onde Camões nasceu; nem o ano ou o dia em que saiu da "materna sepultura" para o primeiro amanhecer. Como não sabemos onde estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia. Nem isso importa. Nalgumas linhas da sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que indubitavelmente são dele, pode ler-se que, como português, encarnou até à medula toda a nossa condição: pobreza, vagabundagem, cadeia, desterro.
"Erros", "má  fortuna" e "amor ardente" se conjuraram para fazer daquele alto espírito do  maneirismo europeu uma das figuras mais desgraçadas da via sacra nacional. Por "erros", talvez se possa entender um cristianíssimo arrependimento daquele marialvismo da sua juventude; a "má fortuna" não pode ter sido senão a de ter vivido num  tempo em que Portugal, além de ser "uma casa sem luz em matéria de ilustração", se preparava fatidicamente  para abandonar todas as suas guitarras nos campos de Alcácer Quibir; quanto ao "amor ardente" – não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre o límpido apelo dos sentidos e toda uma  platonizante teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho?
 Não sabemos também quem o poeta tenha amado, para lá das anónimas "ninfas de água  doce" do Mal Cozinhado e outros bordéis de Lisboa. Mas que tais "ninfas" tiveram na  sua vida importância, ninguém pode duvidar. As cartas de Camões, e como fonte da sua vida privada nada temos mais seguro, além de nos darem notícia do seu espírito arruaceiro, quase não falam noutra coisa. Que a sua poesia só muito raramente tem a ver com os "pagodes" de Alfama é óbvio, mas dali deve ter partido algumas vezes para, depois de metamorfoses várias, voar muito alto, como sempre aconteceu, particularmente em herdeiros da cortesia  e do "dolce still  nuovo". Porque a verdade é que nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos, para tanto se desprender deles, como a de Camões.

Eugénio de Andrade 


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